sábado, 23 de fevereiro de 2019

As tragédias criminosas e ocultas no futebol

    Duas semanas depois da morte de dez garotos no alojamento do Flamengo, o noticiário na imprensa agoniza, apesar de ninguém ter sido responsabilizado. Prisão preventiva, nem pensar. E a cartolagem da CBF, que assina o Certificado de Clube Formador de Atletas, permanece em irresponsável silêncio.
            O desumano drama estende-se Brasil afora. Reportagem na Folha de S. Paulo, em 15 de fevereiro, informa que mais de mil atletas menores vivem em alojamentos nos principais clubes, vários em situação de improviso e irregularidade.
            Como dizia João Saldanha, “vida que segue”... até a próxima tragédia, muitas silenciosas e despercebidas da imprensa. Ocorrem, por exemplo, nos consultórios dos psicólogos dos clubes, quando há esse profissional! Cabe a eles dizer ao candidato ao profissionalismo que o seu tempo para testes se esgotou. E acabou o diálogo.
“Nem todos os clubes têm preocupação com tema tão delicado.  Tratam os jovens como descarte, um produto que não serve. O sofrimento psíquico é muito grande, principalmente se não têm alguém por perto para ampará-los”, escreveu o psicólogo Rafael Moreno Castellani, na sua tese de doutorado – “O Futebol Profissional e o Processo de Formação de Grupo” –, aprovada na USP em 2017.
            Na prática, a presença de um psicólogo é indispensável para um clube obter o certificado de “Formador”. Mas, a maioria dos contratos são de fachada. “Esse descuido é também uma tragédia anunciada, e o discurso de formação humana através do esporte é apenas para inglês ver”, reforça Castellani.
            O psicólogo baiano, Renato Paes de Andrade, por sua vez, viu muito garoto chorar em sua sala, quando trabalhou no Esporte Clube Vitória. Despreparados para dar a notícia, técnicos e dirigentes transferem a missão aos psicólogos: “O sonho acabou”! E lá vai o garoto, sem levar para os pais o que desejava, um contrato valioso. Afastados por até 16 meses de suas famílias, esses jovens tornam-se jogadores frustrados, motivo de chacotas dos coleguinhas, quem sabe com traumas por longos anos.
            Renato conta outra “tragédia”. Depois da dispensa, muitas vezes o garoto aparece em outro clube, com idade alterada, para mais ou para menos. São os famosos “gatos”, prática conduzida, principalmente, por espertos agentes, “caçadores de craques”, os mesmos que se encarregam de levá-los para o exterior, até com passaporte falso, como identificou a CPI da CBF Nike, na Câmara dos Deputados. O aliciamento e o tráfico internacional de atletas menores de idade são escancarados. E daí?
            Sem fiscalização, quadrilhas agem explorando o desejo de milhares de jovens humildes, que tentam no futebol um futuro melhor. Nesse comércio de horrores o interesse econômico é prioridade. E tudo com o “de acordo” dos pais, já que serão beneficiados, caso o “craque” vingue... Porém, o Estado, a CBF e o Ministério Público estão ao largo dessa “tragédia” silenciosa.

José Cruz, Jornalista. Comentarista esportivo. 
Colaborador do Jornal PODIUM desde 2011.
Artigo publicado originalmente na
coluna Campo Livre - UOL.

Nenhum comentário:

Postar um comentário